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Entrevista com Rubem Amorese

RUBEM AMORESE

Consultor legislativo do Senado Federal revela bastidores da instituição e explana sobre a crise vivenciada pelo poder legislativo



JORNAL EXTRA – Que análise o senhor faz da recente crise vivenciada pelo Senado Federal?
RUBEM AMORESE – Vejo essa crise por dois ângulos principais. O primeiro revela uma série de valores corporativos e práticas administrativas sedimentadas como “modo de ser” do Legislativo e que nunca foram devidamente questionadas. Elas existem desde as sesmarias. Os feudos são divididos entre os mesmos e isso é visto como normal; faz parte da vida republicana. Quem haveria de questionar? O segundo ângulo dessa questão começa a surgir a partir da Constituição de 1988, com novas liberdades e garantias sociais, com destaque para a liberdade de imprensa. E o castelo começa a ruir. Os feudos passam a ser questionados. Muita gente ligada à comunicação começou a perder sua parte. Sim, eles se calavam por medo e também por interesse. Muitos jornalistas tentaram passar em concursos do Senado e não conseguiram. A partir daí, por exemplo, chamam “reajuste salarial” de “aumento”, num equívoco maldoso. No entanto, sem a imprensa livre, ainda hoje estaríamos vivendo sob os atos secretos.

JORNAL EXTRA – Muitos estão afirmando que o Senado nada mais é do que uma instituição que representa os resquícios do período imperial da história brasileira. Portanto, acreditam que o Senado deva ser extinto, findando o sistema bicameral. Qual a sua opinião acerca disso?
RUBEM AMORESE – Sim, acredito que o Senado ainda tem muito do período imperial, no seu modo de ser, nas expectativas que um candidato tem ao empenhar a fortuna da família para se eleger. Está mudando, mas o Senado ainda é um lugar de poderosos, embora os latifúndios já não sejam apenas de terras. Hoje já se concebem latifúndios digitais, como os 6 MHZ de faixa “consignados” aos antigos concessionários de canais de televisão. Quanto à extinção do sistema bicameral, vou preferir responder como um político (talvez por ser um funcionário da Casa): a quem interessa essa mudança? Vou dar minha opinião: em parte aos meios de comunicação, que hoje começam a ter dificuldades em obter os dividendos que a proximidade do poder lhes garantia. Sempre foi mais difícil manipular o Senado do que a Câmara, pelo fato de os senadores serem menos vulneráveis à ação direta das bases, uma vez que eles representam os estados e não a população, proporcionalmente falando.

JORNAL EXTRA – Noto que você se preocupa com o poder da mídia...
RUBEM AMORESE – Sim, talvez por ser minha área de especialização. Sou jornalista e comunicador, por formação. Na Assembléia Nacional Constituinte, assessorei deputados e senadores no que se tornou o capítulo da comunicação, na Constituição. Desde então, venho trabalhando nessa área. Em especial, com as outorgas e renovações de canais de rádio e televisão. Daí, talvez, minha atenção para essa área; para seu potencial de influir na definição da imagem que o país constrói de si mesmo. Mas vale salientar, também, que não fui eu que chamou a mídia de “quarto poder da República”. Eu só discordaria de um detalhe: para mim é o primeiro (risos).

JORNAL EXTRA – Em conformidade com o conceito aristotélico, a tarefa da política é averiguar a melhor forma de garantir a felicidade coletiva. Porém, em seu livro ‘Icabode’ (Editora Ultimato), o senhor observa que estamos em uma sociedade cada vez mais “plural, privada e secular”. O senhor acredita que, de certa forma, essa visão social “contagiou” a política, fazendo com que parte dos “representantes do povo” trabalhe tão-somente em causa própria?
RUBEM AMORESE – Creio que sim. No entanto, vale lembrar que essa análise vale mais para países com histórias democráticas mais antigas, como Inglaterra, França ou Estados Unidos. O chamado “tripé da modernidade” ao qual você se refere chegou ao Brasil bem tardiamente. Nossa história é outra; é de coronelismo, é de senhor-de-engenho, de capitão-mor. Por esse ângulo, nossos representantes, com honrosas exceções, sempre trabalharam em causa própria. E a crise por que passa nossa política (não falemos somente do Senado, pois ele é apenas a “bola da vez”), é apenas o sinal de que nem todos os interessados nesse bolo estão conseguindo sua fatia. Eu prefiro pensar que o jogo de pesos e contrapesos que formam a política brasileira, partidária e não partidária (pense nas universidades e nos meios de comunicação e na Igreja, por exemplo), é assim mesmo, no Brasil: todos trabalhando em causa própria. Já vai muito longe o ideal cristão do “Barnabé”, daquele que serve, daquele que se dá pelo bem comum. Eu sei que eles ainda existem. Mas hoje têm até vergonha disso, pois podem ser chamados de “otários”.

JORNAL EXTRA – O senhor afirma que a mídia de massa é uma ferramenta que dita os padrões de “normalidade comportamental”. Desta forma, a mídia pode ser empregada como instrumento de políticas públicas. De que maneira isso acontece?
RUBEM AMORESE – A mídia de massa como aparelho ideológico não é novidade. A novidade é que surgiu um novo senhor, no cenário: o mercado. Entendo a mídia moderna como porta-voz do mercado. E como o mercado se globalizou, ela agora fala diversas línguas. Ela instalou terminais de vídeo e de voz em cada lar brasileiro; ela é capaz de “bloquear” mais de quatro horas diárias da atenção de cada cidadão. Se incluirmos a mídia escrita e os celulares, veremos que somos expostos a um “conselheiro” poderoso. Mais “presente” na mente de um adolescente que seus próprios pais.

JORNAL EXTRA – E que conselhos ela dá?

RUBEM AMORESE - Ela não se limita a nos dar conselhos sobre culinária, criação de filhos, ração para gatos ou agenda de férias; ela vai além e nos ensina sobre comportamento aceitável, sobre sonhos de vida, sobre moralidade, sobre como ser uma pessoa válida. Li, há pouco tempo, uma pesquisa científica que mediu, ao longo de trinta anos, a influência das novelas da Globo sobre o índice de divórcios. Eles encontraram forte correlação entre o comportamento das personagens das novelas e o índice de divórcios na população. Os novelistas negam. Dizem que só retratam a realidade. Mas não creio. O mercado (do qual eles são arautos) pauta a realidade, com o objetivo de obter servilismo consumista.

JORNAL EXTRA – Existe uma controvérsia sobre o Projeto de Lei 122/2006, amplamente apoiado por homossexuais. Enquanto aqueles que apóiam o intento declaram que ele poderá dirimir o preconceito, outros atestam que, caso aprovado, o PL vai mitigar a liberdade de expressão da sociedade. Qual a sua opinião sobre isso?
RUBEM AMORESE – Acho que em toda luta por liberdade há excessos. Acho que as mulheres se excederam em sua luta por igualdade, e agora estão vendo isso e chegando a um termo razoável que não precise mais queimar sutiãs; acho que os sem-terra se excedem em sua luta pela terra, acho que a imprensa se excede em sua liberdade de expressão. Em qualquer caso, esses excessos são compreensíveis, pois a dosagem da força a utilizar para remover barreiras antigas e mudar hábitos mentais é muito difícil. No caso dos homossexuais, acho que acontece a mesma coisa: um grupo discriminado se organiza e luta por aquilo que entende ser seus direitos. E na hora da refrega, surgem os excessos. Inclusive do lado da repressão. Não seria uma luta se a repressão não existisse. Acho que do lado conservador o medo é que essa lei dê aos homossexuais exaltados ferramentas para “destruir” qualquer pessoa que pense diferente deles. Ou pior: que não os ame loucamente. “Afinal, ser gay é ser belo, obrigatoriamente” (os gays e os sem-terra têm muito em comum, no seu modo de lutar). Do lado dos homossexuais, entretanto, sabemos que muitos buscam o “direito de não apanhar na rua”; de não ser discriminado em concursos, competições por emprego, e mesmo no convívio social. Não é justo? Mas, por causa dos excessos, não sabem muito bem onde colocar esses marcos divisórios. E os estão colocando muito além do razoável, na minha opinião.

JORNAL EXTRA – É verdade que o site do Senado retirou do ar a enquete sobre o PL 122/2006 quando 65% dos internautas se manifestaram contrários ao projeto? Por que a enquete foi retirada?
RUBEM AMORESE – Tenho recebido denúncias dos dois lados. A primeira dizia que o site foi invadido por hackers. Acredito, pois esta semana só o nosso sistema de caixas postais receberam mais de 35 milhões de spams (mensagens não solicitadas). Uma avalanche, claramente maldosa. Dizem os mesmos que são hackers inconformados com a diferença no marcador. Não sei. A outra denúncia dizia que esses hackers eram evangélicos e católicos, atuando de dentro do próprio Congresso Nacional. Essa versão é incrível. Por que aqueles que venciam com uma grande margem torpedeariam o sistema? A propósito, a enquete já foi restaurada, com um detalhe: a partir do zero. E o jogo endureceu. Neste momento, no lugar da enquete consta a seguinte mensagem: “Ocorreu um erro no servidor enquanto processava a URL. Por favor contate o administrador do sistema”.

JORNAL EXTRA – Em um artigo, o senhor confessa que gostaria de saber “como são as relações familiares os nossos psicólogos e sociólogos”, bem como do “nosso presidente”. Com essa afirmação, o senhor mostra que acredita que a sociedade hodierna não valoriza a estrutura familiar?
RUBEM AMORESE – Lembro-me desse artigo. Eu falava sobre “estado parental” e sobre a forma como o PT se arvora a legislar sobre tudo. Eu falava sobre os especialistas do governo. E exemplificava com o caso de um pai que foi preso por dar uma chinelada em sua filha. O pai foi levado pelo camburão, sob as lágrimas da família e da filha “espancada”, que afirmava a todos ter merecido. Eu dizia que o governo agora nos ensina como criar nossos filhos e forma, via mídia de massa (já falamos sobre isso), um exército de olheiros. Quem não educar seus filhos pela cartilha do PT pode ir preso. Claro, esse é apenas um exemplo da dificuldade de separação entre a esfera privada e pública. Mas eu questionava a situação. De fato, ao mesmo tempo em que sou a favor da luta contra a violência infantil, sou contra os excessos petistas (sempre os excessos!). O tom arrogante é o que me incomoda mais. Então, propus uma singela prova dos nove: quero saber como são as finanças pessoais dos economistas do governo; quero saber dos filhos desses agentes que prenderam aquele pai; quero saber como o nosso presidente cria, ou criou, seu filhos. Meu palpite é que, de especialistas não têm nada; é tudo indicação política. E não são melhores que nós em sua vida privada. Mas, por terem a caneta, pensam que são. Tentei ser contundente. Talvez me tenha excedido.

JORNAL EXTRA – O senhor acredita que a modernidade “desumaniza” as pessoas? De que forma?
RUBEM AMORESE – Hoje já se fala de pós-modernidade. Mas se o tripé ainda for o mesmo: pluralização, privatização e secularização, então creio que ela traz, como tudo, esse lado desumanizante. Nunca tivemos tanta liberdade para escolher, como nos dias de hoje. Mas, em compensação, nunca escolhemos tão solitariamente. E introjetamos essa solidão, na forma de uma “consciência inconsciente”, num modo de ser, porque desaprendemos a viver comunitariamente. É confortável não precisar de ninguém, não ter ninguém se metendo em nossa vida. É bom poder dizer: “eu não preciso suportar essa situação”. E é verdade; nossa sociedade fornece os meios para a privatização da vida. Saímos da nossa toca apenas para ações de consumo. Passamos a viver sozinhos, numa kit; longe da família; andamos sozinhos em nossos carros; muitos estão preferindo não se casar, por não quererem ser “consumidos” e depois descartados; nossos encontros são superficiais; preferencialmente mediados por sites de relacionamento etc. Mas meu pensamento é que nunca fomos tão solitários. Dolorosamente solitários. Eu diria “avulsos” e caóticos. Numa palavra, somos uma orgulhosa geração de órfãos. Narcisistas, orgulhosos, exigentes e órfãos.

JORNAL EXTRA – Na sua opinião, quais são as raízes das contradições da sociedade atual?
RUBEM AMORESE – A pluralização nos transforma em um grande supermercado, onde a consciência de opção impera. Tudo ali é opção: sabores, cores, preços, embalagens, promoções etc. Isso vale para macarrão, geladeira, pasta de dente, vestuário... opções sem fim. E como você escolhe? Você usa critérios pessoais, íntimos, privados. Esses critérios, muitas vezes, são “pessoais e intransferíveis” (além de não endossáveis). Vão desaparecendo os critérios tradicionais, sociais, materializados em normas de conduta ou na religião. Daí a idéia da secularização. A religião já não mais determina como vou fazer minhas escolhas. Elas, agora, são hedonistas. E se alguém quiser me criticar pela marca de sabonete ou pela orientação sexual que escolhi, eu digo: “dá licença?!”. Ou seja, se a pluralização nos transforma em um grande supermercado, meu comportamento dentro dele tende a me colocar num zoológico, com jaulas fechadas, onde tenho a liberdade e segurança de ser o tipo de fauna que desejar. E Deus? Bem, “diz que Deus diz que dá, diz que Deus dará, ó nega; mas se Deus não dá, eu vou me indignar e chega” — já diria Chico Buarque. Traduzindo, minha relação com Deus, agora, é de consumo. E se ele não corresponder às minhas expectativas, dou-lhe um clique, como quem muda de canal ou troca de marca. Nas palavras de Mark Twain,  É o melhor dos tempos, o pior dos tempos.

JORNAL EXTRA – De que forma pode-se construir uma sociedade sem tantos abismos sociais? Qual é o papel do Estado nesse processo? E o da sociedade civil?
RUBEM AMORESE – Essa pergunta nos remete para a utopia. Escolho a utopia cristã. Porque estou convencido de sua factibilidade. Não me atrai uma utopia lançada para o futuro; apenas como ideal, irrealizável. Mesmo sendo uma pessoa de fé, preciso de alguma concretude. Ou seja, preciso de uma utopia que funcione hoje, ainda que precariamente. O fato de ela funcionar me ajuda a esperar pela sua plenitude, pela sua realização. E o fato de não encontrar, ainda, essa plenitude, faz do meu labutar a colaboração com essa utopia. Assim é o cristianismo: uma utopia que, por seus erros e acertos do passado, me permite caminhar com alguma segurança, hoje, e me dá esperança para o futuro. Temos falado muito em solidariedade, em igualdade de oportunidades, em redução da corrupção, em justiça. Vejo aí uma sociedade laica anelando por valores cristãos. Indivíduos que desejam justiça sobre todos, inclusive sobre eles mesmos. Esse é o ideal cristão: uma justiça que seja justa inclusive comigo; não apenas para meus inimigos. Para mim, bastaria. Sim, um Estado em que a clava forte da justiça raiasse como o sol da liberdade. Não creio em verdadeira liberdade sem justiça. Então, eu resumiria minha utopia cristã para um Estado laico com a palavra justiça. E digo mais: ao realizar essa utopia, ainda que precariamente, nossa sociedade estaria, de certa forma, dizendo, com lábios leigos: “venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como nos céus”. E eu, privadamente, apenas como cidadão, ousaria dizer: amém.


Entrevista concedida ao jornalista Jénerson Alves.

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