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A modernidade e as amplas prateleiras do mercado religioso



Por Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Branca

Apavorado ante o mistério da imensidão do cosmos e perdido em termos de sentido para a existência, o ser humano buscará sempre seus deuses, fabricará seus ídolos e se curvará diante do “mysterium tremendum”.
O aspecto mais relevante do novo cenário religioso no Brasil, revelado por pesquisas recentes, é o surgimento de uma nova personagem: o religioso não institucionalizado, que busca uma experiência de espiritualidade não tutelada pelas hierarquias das religiões formalmente organizadas em termos de dogmas, rituais e códigos morais. Vivemos os dias da religião sob medida, montada por consciências individuais que misturam os ingredientes disponíveis nas prateleiras do mercado religioso.
O sociólogo Otto Maduro define religião como “conjunto de discursos e práticas referentes a seres superiores e anteriores ao ambiente natural e social, com os quais os fiéis desenvolvem uma relação de dependência e obrigação”. As ciências da religião sugerem que as religiões se estruturam com base em dogmas, rituais e tabus, isto é, crenças adotadas como verdades inquestionáveis, celebrações litúrgicas em homenagem e devoção às divindades, e regras de comportamento moral que acarretam benesses ou maldições.
A modernidade não conseguiu acabar com a relação de dependência e obrigações, pois o ser humano é atormentado por sua finitude, encurvado pelo peso de uma culpa ancestral, apavorado ante o mistério da imensidão do cosmos, e perdido em termos de sentido para a existência. Por essa razão, buscará sempre seus deuses, fabricará seus ídolos e se curvará diante disso que Rudolf Otto chamou de “mysterium tremendum”, a que damos o nome de Deus.
Mas a modernidade destruiu, sim, a religião como sistema de dogmas, rituais e tabus. O conceito de modernidade nos remete à segunda metade do século XVIII, com a revolução industrial – capitalismo, ciência e técnica, urbanismo, desenvolvimento ilimitado, a revolução democrática sensível aos direitos humanos, e principalmente ao conceito de indivíduo e ao descobrimento da subjetividade, que afirma a consciência individual acima de qualquer autoridade e liberta o indivíduo de sua dependência das instituições sociais, inclusive e principalmente religiosas.
Esse ideário moderno exige dois outros aspectos da individualidade: a autonomia e a racionalidade. Autonomia, a lei em si mesma, fala da capacidade que o indivíduo tem de agir movido e orientado por sua própria consciência, assumindo, portanto, a responsabilidade por seus atos.
Implica todo poder normativo subordinado à consciência individual e, consequentemente, a rejeição de todo poder arbitrário e dogmático, representado por um Estado ou um governo, uma ideologia ou religião, uma divindade ou, em última instância, Deus. O princípio cartesiano “penso, logo existo” explica o Iluminismo como esclarecimento racional, em oposição ao dogmatismo fundamentalista e obscurantista.
O resultado desse processo é que a modernidade, apesar de avanços significativos – o pluralismo ideológico, a abrangência da educação, a superação da superstição e a emancipação da ciência – também significou racionalismo, individualismo, humanismo e secularismo. Ou seja, a religião fora do espaço público e o universo vazio do divino e do sagrado. A modernidade deu origem a “ismos” tão opressivos e escravizadores das consciências e das massas quanto os “ismos” religiosos contra os quais se levantou.
A verdade é que os avanços da ciência, da técnica e da razão, que, em tese, deveriam construir um mundo melhor, promover a justiça e a paz, e apontar caminhos para a felicidade e a realização existencial do ser humano, de fato fizeram água. O saldo da modernidade é o rompimento com as instituições sociais religiosas e o abandono da pessoa humana à sua própria consciência e à mercê de sua liberdade. Mas ainda carregando no peito as mesmas questões que afligiam nossos antepassados.
O vazio do universo implicou também um vazio de sentido (niilismo) e um vazio de critérios morais para ordenação da vida. Essa é uma das compreensões possíveis da denúncia de Fiódor Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Eis porque a experiência religiosa tutelada pelas religiões institucionalizadas se esvaziou, mas a busca pelas dimensões da espiritualidade cresce a olhos vistos.
O rebote da modernidade é a chamada pós modernidade – ou hipermodernidade, alta modernidade, modernidade tardia, modernidade radicalizada, modernidade líquida, seja lá como se queira chamar. O tempo se encarregou de desmascarar as pretensões da razão humana e fez as vezes dos profetas e sábios místicos, que sempre insistiram em afirmar que a realidade é distante e profunda, e que o universo esconde mais mistérios do que é capaz de discernir a “vã filosofia”.
O mundo atual se explica mais pelo recrudescimento dos fundamentalismos religiosos do que pela ausência de religião. Em resposta ao relativismo e ao niilismo moderno, a religião ressurge na pós-modernidade com uma força avassaladora.
Ainda que afetado por interesses geopolíticos e econômicos, o conflito entre Ocidente e Oriente não pode ser entendido nem terá solução sem uma clara comprensão das forças e implicações do embate entre o cristianismo e o islamismo como matrizes de sentido para as civilizações que sustentam.
Alguns dos mais relevantes debates contemporâneos, sejam científicos, éticos, políticos ou econômicos, são travados na arena religiosa: criacionismo versus evolucionismo como teoria a ser ensinada nas escolas, o aborto como questão moral ou de saúde pública, os direitos civis dos homossexuais e as controvérsias ao redor das leis contra a homofobia são exemplos recentes de conflitos entre os que acreditam na prosperidade social atrelada ao retorno aos valores religiosos da tradição judaico-cristã contra aqueles que defendem um estado laico e secular.
Assim como em muitos de seus intentos, a modernidade fracassou também em acabar com a religião. A racionalidade científica e o secularismo obviamente não conseguiram provar que Deus não existe, pois Deus não é variável epistemológica, isto é, não é passível de verificação em testes de laboratório. Mas a modernidade conseguiu, ainda que temporariamente, desferir um duro golpe nos representantes de Deus, notadamente as instituições religiosas e seu clero.
A experiência religiosa já não se resume à obediência cega aos dogmas e à hierarquia institucional. A sociedade moderna não abandonou Deus, mas colocou seus intérpretes e seus representantes coletivos sub judice. Deixou de lado as tradições e seus necessários hábitos, costumes e crenças. E partiu para uma viagem pessoal e particular rumo à religião privatizada e a uma experiência de fé à la carte.
As massas decepcionadas com a modernidade e suas promessas voltam a correr para as categorias do sagrado, do transcendente e do divino. Nos países do chamado Terceiro Mundo, a religião nunca saiu de moda. Conceitos como modernidade e pós- modernidade passam longe dos dilemas de quem vive na pobreza e na miséria extrema. Os resultados das últimas pesquisas a respeito do cenário religioso no Brasil indicam que, com sua mensagem que enfatiza o poder do Espírito Santo e a interferência de Deus no cotidiano das pessoas, as igrejas evangélicas crescem sem parar.
Motivados pela busca de solução para seus problemas pessoais e dificuldades de inserção na sociedade, as massas se convertem à esperança prometida pela religião. As pessoas trocam de religião ou de credo em virtude de questões como desemprego, doenças na família, problemas conjugais, perdas significativas e sofrimento intenso, e também e principalmente por solidão e a necessidade de sentido existencial.
Quem não tem para onde correr, corre para Deus. Os que sabem disso e não têm escrúpulos em se aproveitar da fragilidade de quem sofre são protagonistas de um processo nefasto que mantém acesa a fogueira da religião entendida no pior de seus sentidos.
O atual retrato da fé permite a afirmação de que, se é verdade que as instituições religiosas estão abaladas, Deus continua vivo como sempre, e adorado – ou idolatrado – como nunca.
Fonte: Valor Econômico

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