ROBINSON CAVALCANTI
é cientista político e bispo anglicano da Diocese do Recife. Aqui, ele fala sobre o livro 'Cristianismo e Política' (Editora Ultimato) e analisa o engajamento evangélico nas administrações públicas com o passar dos tempos. Vale a pena conferir.
"Durante a Ditadura fizeram uma amnésia"
é cientista político e bispo anglicano da Diocese do Recife. Aqui, ele fala sobre o livro 'Cristianismo e Política' (Editora Ultimato) e analisa o engajamento evangélico nas administrações públicas com o passar dos tempos. Vale a pena conferir.
"Durante a Ditadura fizeram uma amnésia"
JORNAL EXTRA – Como foi feita a concepção do livro ‘Cristianismo e política’?
ROBINSON CAVALCANTI - Exatamente. No momento em que estávamos vivenciando a ditadura, eu fui desafiado por líderes evangélicos no Brasil, porque havia duas coisas. Primeiro: o mundo protestante sempre foi participante da política, desde a sua chegada ao Brasil, em 1855, quando os protestantes não tinham direito à liberdade religiosa e nem podiam votar. Mas, com o decorrer da história, a proclamação da República, separação de Igreja e Estado, essa participação foi crescente, até o Golpe de 1964. Durante a ditadura militar, os setores que controlaram a Igreja fizeram uma espécie de amnésia compulsória. As gerações novas não conheceram nem os nomes nem os episódios da participação política dos evangélicos no Brasil e – obviamente – também em escala mundial. E também deixou de se ensinar, da Bíblia, a parte sócia, a parte política. Havia essa grande lacuna. Então, muitos líderes me diziam: “Robinson, pelo fato de você ser um cristão e ser cientista político, deveria produzir algo sobre isso, e as gerações novas vão precisar recuperar o que foi perdido”. E, obviamente, nunca foi recuperado. Assim, eu escrevi o livro. Depois que escrevi o livro, não consegui editora. As editoras cristãs na época temiam que fosse publicado. O livro foi escrito muito devagar, porque eu estava lecionando e só tinha tempo de trabalhar nele nas férias. Fazia um capítulo em julho, dois capítulos em janeiro e fevereiro. Levei quase dois anos para fazer. E nesse período eu viajei muito para comunidades evangélicas em nível internacional, eu cheguei a pregar na Capela do Parlamento sueco. E, assim, fui adquirindo experiências. Então, eu levei cerca de dois anos para conseguir que o livro fosse finalmente editado. Isso coincidiu com o período da Constituinte. Nós lançamos no Brasil naquela época um movimento dos Evangélicos pela Constituinte. E eu fui convidado para fazer palestras. Nós vendemos cinco mil livros em dez meses. Daí em diante, o livro foi várias vezes reeditado. Eu fiz ajustes na parte histórica, conforme ela foi avançando, com as mudanças no Brasil e também com a queda no Muro de Berlim. Então, o livro foi sendo reeditado, agora em outubro está saindo mais uma edição pela Editora Ultimato. Então, o livro tornou-se uma referência. Mas, a minha motivação foi o desafio dos evangélicos para deixar registrado um ensino que tinha sido muito comum para a geração da gente, mas que havia sido perdido no mundo protestante, a partir da Ditadura Militar. Basicamente, é o contexto do livro.
JORNAL EXTRA – E essa edição vai ser ampliada, vai ter alguma novidade?
ROBINSON CAVALCANTI – Não. Essa re-edição, inclusive, a editora não me pediu. Essa é a segunda edição que sai sem autorização. E a gente achou que deveria ficar como está, porque até duas edições atrás, eu fiz ajustes, na parte histórica, a parte bíblica é a mesma. A parte de História Geral, tanto da Idade Moderna, como a do Brasil até o exterior, não muda. A questão seria só tópicos mais contemporâneos. Apesar de ser um livro que continua muito usado em seminários, enfim, em movimentos de liderança. Mas a Editora Ultimato não me pediu para fazer atualização. Então, vai sair o mesmo texto que já está agora nas livrarias. E nós lamentamos que os evangélicos que foram tão participantes no passado, fizeram reticências inclusive ao regime militar, quando a CNBB chegou a soltar uma nota saudando o Golpe, ele tinha sido de certa maneira cooptado pelo regime, saindo da cena política. Quando o movimento evangélico volta à política depois da democracia, ele volta sem referenciais teóricos. Isso faz com que hajam muitos escândalos, muita prática que não condiz com a tradição, porque eles entraram no jogo comum da política brasileira, do toma-lá-dá-cá, do clientelismo, que encoraja grupos minoritários que estão preocupados, porque tanto no regime militar do Brasil vários grupos que encorajavam o engajamento evangélico na política está uma coisa muito utópica, e tem havido muitos escândalos. Um exemplo é a oração pela propina lá em Brasília, que vem distante dos ideais nossos, cristãos, não é?
JORNAL EXTRA – Como o senhor enxerga os múltiplos candidatos que se tem aí, pastores, cantores evangélicos se candidatando. Como o senhor enxerga essa questão?
ROBINSON CAVALCANTI – O mundo protestante no Brasil, de 1855 a 1964, foi liderado pelas igrejas chamadas históricas – congregacionais, batistas, metodistas etc. O mundo pentecostal, que na época era restrito a poucas igrejas – Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e depois a Igreja Quadrangular. Somente. Elas se mantinham muito isoladas do mundo político. E somente com as igrejas neopentecostais, também chamadas de pseudo-pentecostais, que é um fenômeno muito recente, que se dá após o fim da ditadura. Esses grupos neopentecostais e setores do pentecostalismo que, ao voltar... aliás, ao voltar, não, foram os históricos que se afastaram, mas os pentecostais nunca participaram. Então, os pentecostais e os neopentecostais têm um déficit de prática, de conhecimento, e são mais fáceis de serem cooptados pelo sistema vigente. Então, eu fiz, na época, uma distinção entre evangélico político e político evangélico. O evangélico político é um evangélico que, por ser uma pessoa respeitada na comunidade, uma pessoa capaz, é eleito com a bandeira de representar a comunidade toda, e legislar, e atuar, visando ao bem comum da sociedade. O político evangélico representa um voto clientelista, quer dizer, ele é cooperativista, ele representa os interesses peculiares daquela comunidade e vai para o parlamento ou para o poder executivo priorizar, privilegiar, as reivindicações daquela comunidade, daquele terreno, e aí ele abre mão da sua identidade protestante e muitas vezes não tem programa, não tem proposta, não tem uma vida de lealdade partidária, e o seu currículo é apenas religioso, como cantor sacro, ou diácono, ou professor de Escola Dominical, que é uma boa qualificação para um cidadão, mas não necessariamente para o que um cargo público exige, que é um certo preparo e, obviamente, propostas que levem ao bem comum. Então, nós achamos que isso gera um certo desgaste. Principalmente quando são as chamadas candidaturas oficiais, em que a igreja deixa de ser um lugar de acolhida e estímulo para as pessoas de suas várias ideologias, termina sendo uma espécie de curral eleitoral religioso. Isso é uma distorção. Eu sempre tenho denunciado. Nós esperamos que essa fase dos candidatos oficiais ou oficiosos venha um dia a terminar, para dar maturidade à comunidade protestante, da sua participação no conjunto da cidadania. Senão, haverá um desgaste muito grande para a imagem do protestantismo.
JORNAL EXTRA – No último texto que o senhor publicou no site da Diocese Anglicana do Recife, tem um trecho que o senhor diz que achou o filme ‘O Bem Amado’ mais interessante do que o programa eleitoral...
ROBINSON CAVALCANTI – Eu estou ironizando, não é? Quer dizer, na verdade, o programa eleitoral é uma coisa positiva, porque em um país que se você não tiver dinheiro, você não aparece, há um programa gratuito. Apesar de ser questionável no Brasil essa questão de tempo por representação parlamentar porque, de certa forma, consolida quem está aí, quem fica e quem avança. Mas, você tem tido um critério por parte dos partidos, na seleção das imagens, na seleção das mensagens, e tem muita coisa pitoresca e às vezes chocantes e esdrúxulas, principalmente nas candidaturas aos cargos legislativos. No caso do cargo de presidente, é que não havendo no Brasil uma candidatura de oposição ao sistema, ao modelo de macroeconomia, de política, pois o modelo de FHC-Lula é defendido pelos três principais candidatos. Isso faz com que o debate seja não-motivante, então foi mais gratificante, para mim, estar assistindo o filme do que o horário político. Foi um pouco de ironia que eu fiz.
JORNAL EXTRA – Esse personagem, Odorico Paraguassu, representa uma prática política comum no Brasil...
ROBINSON CAVALCANTI – Essencialmente nas pequenas cidades do interior. Eu me criei em uma pequena cidade do interior das Alagoas, que foi devastada pelas enchentes, União dos Palmares. Então, eu passei parte da minha vida no Vale do Mundaú, por ali, e participava da vida política na região. E eu viajo muito pelo interior. A política no interior não é muito diferente do que a mídia, principalmente, cada cidade do interior tem duas rádios, que pertence aos grupos políticos. Quem não pende para nenhum dos lados, não tem acesso à comunicação. E há aquela rede de amizades, parentescos, padrinhos, na política. Entre o filme e a política não há muita diferença. No filme, é mais caricato, mas é uma realidade. No interior, nas periferias das grandes cidades, que é o chamado clientelismo de asfalto.
JORNAL EXTRA – Na década de 1970, o senhor escreveu o polêmico livro ‘Uma bênção chamada sexo’.
ROBINSON CAVALCANTI – Eu lancei alguns livros na área política, como A Utopia Possível, A Igreja, o País e o Mundo, são livros na área política. Eu lancei alguns na área ética e social, como Reforçando as Trincheiras, que aborda a questão do homossexualismo. Mas, em 1976, eu lancei o primeiro livro escrito por um teólogo evangélico sobre sexualidade. Na década de 1990, eu lancei Libertação e Sexualidade. ‘Uma bênção chamada sexo’ vendeu acho que dez edições, um livro muito vendido em língua portuguesa pelo pioneirismo de tentar fazer um estudo interdisciplinar, com um olhar teológico, com antropologia. Foi, basicamente, um desafio que eu tive, enquanto assessor do Movimento Universitário, e mais uma vez eu escrevo desafiado. Eu fui desafiado pelos jovens, que na época não tinham literatura nenhuma. Isso foi o que fez que eu pesquisasse e lançasse esse livro, na época.
JORNAL EXTRA – E, assim, é interessante, pois normalmente, no contexto religioso, o sexo é visto como “pecado”, mas o senhor o define como “bênção”...
ROBINSON CAVALCANTI – É. Na verdade, o que eu procuro mostrar é que o Brasil teve várias mudanças. E, quando os protestantes chegam aqui, encontrando o celibato compulsório da Igreja Católica Romana, a valorização da Virgindade Eterna de Maria, a relação de santo como alguém que resistiu bravamente à sexualidade, induz na cultura um sentimento de culpa com a sexualidade. E na Reforma Protestante, esse foi um tema tomado por Lutero e outros setores neopuritanos, que depois veio a ter uma recaída medieval, nós sabemos isso hoje. Mas a Reforma foi muito forte em afirmar a valorização da sexualidade e dizer que o ser humano é ambíguo e plural. Seja na política, na moral, ou nas relações sexuais, ele é capaz de fazer coisas boas ou coisas más. Você pode ter um estupro, que é uma coisa má, mas não a sexualidade em si. A sexualidade em si é uma coisa positiva. Você pode fazer um elo com um automóvel. Se eu atropelo alguém, o carro não tem culpa. Sou eu, que estou na direção. Eu trabalhei com essa filosofia. E, ainda é um problema. Eu digo que a maior dificuldade da igreja em lidar com a questão da homossexualidade é devido a essa conduta secular que hipervalorizou a questão da heterossexualidade. E eu creio que fiz a minha parte, ao escrever os dois livros, eu fiz artigos, palestras, mas ainda é um tema irresolvido.
JORNAL EXTRA – O senhor tem outros projetos próximos de lançamentos de livros?
ROBINSON CAVALCANTI – Veja bem. Eu, quando assumi o episcopado, há 13 anos, eu estava me aposentando da universidade com uma pretensão mais de escrever e alguns projetos, seria uma espécie de memórias, além de escrever um livro sobre a origem de usos e costumes da igreja protestante, mas o episcopado é muito desgastante em termo de trabalho. Nesse período, a gente reeditou A Utopia Possível, reeditou Cristianismo e Política, reeditamos A Igreja, o País e o Mundo, um livro sobre anglicanismo que está na segunda edição. Relançamos outros dois livros em um volume só, Igreja Comportamento Liberdade e Renovação Histórica. Fizemos um livro sobre a homossexualidade, que foi Reforçando as trincheiras. Então, no momento, tenho escrito para revistas, dando entrevistas. Mas estou, nesse momento, sem um projeto, o último trabalho que foi feito foi um livro sobre o anglicanismo, que foi lançado há um ano.
JORNAL EXTRA – E sobre a questão da Missão Integral. Como está o sonho?
ROBINSON CAVALCANTI – Eu creio que ele continua vivo. Agora, especialmente, nós estamos trabalhando na criação de uma entidade, aglutinadora dos evangélicos no Brasil. Possivelmente será Aliança dos Cristãos Evangélicos no Brasil, que deverá estar sendo fundada em novembro. Quem tem liderado esse processo são figuras como Ariovaldo Ramos, Valdir Steunergaeul, são pessoas comprometidas. Ou seja, embora você tenha um mundo pentecostal, neopentecostal, fundamentalista, mas há um setor pensante, existem lideranças mais jovens, que mantém acesa essa coisa da Aliança Universitária, e agora essa entidade está sendo criada a visão de uma Missão Integral e não uma visão setorizada, eu vejo que a proposta tem sido da formação de uma identidade. Estaremos em novembro em São Paulo , dia 30, estaremos fundando essa entidade, com essa proposta.
JORNAL EXTRA – Escrever é uma atividade provocativa?
ROBINSON CAVALCANTI – Eu acho que escrever é uma vocação. Tem que ser vocacionado. Como há muitas vocações. Uma vocação tem de ser trabalhada. Eu não teria crescido nessa vocação se não tivesse, ao longo da minha vida, excelentes professores de Português, e a minha grande escola foi quando, durante dez anos, escrevi a coluna evangélica do Jornal do Commercio, exposta a um público maior, tanto em estilo quanto em clareza. Foi minha grande escola. Obviamente que quem escreve se expõe. Se posiciona. Isso faz com que hajam pessoas que concordem e pessoas que discordem de você, obviamente. Mas eu creio que o papel de escrever é informativo, mas, como você bem chamou, ele também é provocativo à reflexão. Eu acho que isso é objetivo do escritor: pensar e levar os outros a pensar também.
Publicada na edição 342 do Jornal Extra de Pernambuco.