Chamava-se Letícia. Garota de poucas palavras e muitos pensamentos. Cultivava uma discrição que às vezes parecia invisibilidade. Assim, esquivava-se de cantadas e paixonites que despertava nos garotos. Tinha apenas 16 anos, mas parecia ser mais velha – não por fora, sim por dentro. Uma alma antiga (ou seria eterna?) em um corpo jovem.
Até que conheceu o Hilário. Um garoto sem grandes atrativos. Óculos garrafais, corpo delgado, face com espinhas. E ela sentiu-se atraída por ele. Um magnetismo maior do que qualquer afinidade corporal. Era como um ímã, um fio intangível puxava um ao outro.
A ele, e somente a ele, Letícia teve coragem de contar seu segredo: ela via sons. Sim. Ouvir uma música poderia ser para ela uma experiência incrível ou trágica, pois cada melodia ganhava contornos específicos, os quais apontavam para o estado de espírito do compositor e/ou intérprete. Porém, o que mais a afligia não eram as canções, mas as palavras. Da boca de boa parte das pessoas, procediam sombras, lagartos, fumaças, venenos…
O Hilário não era assim. Quando ele falava, a garota via fluir azaleias, crisântemos e girassóis. Suas palavras eram formadas por cores vivas e alegres. Como poderia ser assim?
Ele a beijou. Não como Judas beijou o Senhor; como um devoto que oscula uma imagem.
E ela entendeu que não deveria se importar com as sombras procedentes dos outros. E ela passou a falar, fazendo brotar de seus lábios um prisma de cores deslumbrantes.
Texto: Jénerson Alves
Imagem: "Geliefden (Young Lovers)", por Robert Archibald Antonius Joan Graafland