Minha amada Lucrécia,
Espero que estejas bem e saudável. Sempre rezo aos deuses por nossa família. Escrevo-te para dizer que nesta missão no poderoso exército romano tenho sido acompanhado pela saudade de ti. Oh, quanto pulsa meu coração com vontade de rever a ti e às crianças! Há neste sentimento um peso maior do que todo o arsenal da nossa legião.
Quero, porém, relatar um fato ocorrido recentemente que muito me intrigou. Por esses dias, foi crucificado um certo Yeshua, que era chamado Rei dos Judeus. Fizemos para ele uma coroa de espinhos. Pusemo-la sobre ele e vestimo-lo com púrpura. Fitando seu rosto ensanguentado, zombamos dele e o esbofeteamos. Ele mantinha um inexplicável e inquietante silêncio.
Foi mandado ao Calvário, carregando o lenho. Pena capital comum a tantos criminosos, como bem sabes, minha querida. Porém, confesso-te que havia algo distinto neste crucificado. Durante todo o tempo, seus olhos reluziam um certo brilho, para os quais eu não conseguia olhar sem sentir uma comoção. Ele parecia me enxergar por dentro – e, de dentro dos seus olhos, parecia fluir uma fonte de bondade.
Poucas foram as palavras ditas por esse tal Yeshua. Uma dessas frases, amada minha, foi “Tenho sede”. Em vez de água, demos-lhe vinagre. Ele recusou. Depois, curvou a cabeça e expirou. Nesse momento, o sol se escondeu e a escuridão cobriu a terra. Sobre mim, porém, repousou o peso da dúvida. Passo os dias como que ouvindo uma voz me dizer que aquele homem era justo. E, pensando nele, sou eu que agora sinto sede – não de água, muito menos de vinagre. É uma sede da fonte de bondade que parecia fluir daqueles olhos…
Sobre esse assunto e outros mais, pretendo conversar contigo pessoalmente, ó minha amada Lucrécia.
Da parte de Cassius, soldado da legião romana.
Texto: Jénerson Alves
Imagem: The arrest of Christ, de Caravaggio