Pular para o conteúdo principal

O bafo do Tempo - por Jénerson Alves

 



Pode não parecer, mas eu tenho um ‘intrigado’. Sim, um ‘sujeito’ do qual não quero ver a face (se bem que nunca a vi) e sinto um certo asco apenas em ouvir o seu nome. Para não deixar minha meia-dúzia de leitores inquieta, vou logo revelando: esse meu ‘intrigado’ é o Tempo. Não quero vê-lo, tampouco conversar com ele. Se tal criatura sentar-se à minha frente, não o chamarei para tomar um café.


Infelizmente, sinto que enfrentá-lo é uma luta inglória. Ontem mesmo tentei burlá-lo. E o que fiz? Algo simples. Liguei a televisão e programei a exibição de um filme que eu costumava assistir na Sessão da Tarde. Exatamente como fazia quando voltava da escola há alguns anos, preparei o leite com Nescau e as bolachas Maria. Queria sentir o gosto da infância nesses elementos.


“Que imbecil!”


Foi essa a exclamação que ouvi do Tempo, quando ele me avistou naquela circunstância. Chega pude sentir o bafo dele zombando na minha cara. Só não pude vê-lo – e já não tenho certeza se isso foi porque o Tempo é invisível ou se foi por causa do astigmatismo…


Enquanto o Tempo zombava de mim, fui subitamente abraçado por uma senhora. Repeti Camões: “Que me quereis, perpétuas saudades?”. Poderia uma lágrima ter caído da minha face, mas acho que essa fonte está meio seca (ou só meio cheia…).


Texto: Jénerson Alves

Imagem: Detalhe de ‘A persistência da memória’, de Salvador Dalí


Postagens mais visitadas deste blog

Professor Reginaldo Melo

por Jénerson Alves Texto publicado na Coluna Dois Dedos de Prosa, do Jornal Extra de Pernambuco - ed. 625 Ao lado de outros poetas de Caruaru, entrei no apartamento onde o professor Reginaldo Melo está internado há três semanas, em um hospital particular. Ele nos recebeu com alegria, apesar da fragilidade física. Com a voz bem cansada, quase inaudível, um dos primeiros assuntos que ele pediu foi: “Ajudem-me a publicar o cordel sobre o Rio Ipojuca, que já está pronto, só falta ser levado à gráfica”. Coincidentemente, ele estava com uma camisa de um Encontro sobre a questão hídrica que participou em Goiás. Prof. Reginaldo (centro), ao lado de Espingarda do Cordel (e) e Jénerson Alves (d) Durante o encontro no quarto do hospital, ocorrido na última semana, quando Olegário Filho, Nelson Lima, Val Tabosa, Dorge Tabosa, Nerisvaldo Alves e eu o visitamos, comprometemo-nos em procurar os meios para imprimir o cordel sobre o Rio Ipojuca, sim. Além disso, vamos realizar – em n

Apeirokalia

Do grego, a palavra ‘apeirokalia’ significa “falta de experiência das coisas mais belas”. A partir deste conceito, compreende-se que o sujeito que não tem acesso a experiências interiores que despertem o desejo pelo Belo, pelo Bem e pelo Verdadeiro durante a sua formação, jamais alcançará o horizonte de consciência dos sábios. A privação às coisas mais belas predomina em nosso país. Desconhecemos biografias de nossos ancestrais – ou, quando conhecemos, são enfatizados aspectos pouco louváveis de suas personalidades. As imagens identitárias do nosso povo são colocadas a baixo. Esculturas, construções, edificações, pinturas são pouco apresentadas. Até a nossa língua tem sido violada com o distanciamento do vernáculo e do seu significado.   A música real tem perdido espaço para séries de ritmos abomináveis. Este problema perpassa por uma distorção da cosmovisão sobre o próprio ser humano. Hedonista, egocêntrico e materialista, o homem moderno busca simplesmente o seu bem-estar.

O gato vaidoso - poema de Jénerson Alves

Dois felinos residiam Em uma mesma mansão, Mas um percorria os quartos; Outro, somente o porão. Eram iguaizinhos no pelo, Contudo, na sorte, não. Um tinha mimo e ração; O outro, lixo e perigo. Um vivia igual um príncipe; O outro, feito um mendigo (Que sem cometer delito Sofre só o seu castigo). No telhado do abrigo Certa vez se encontraram. Ante a tela do contraste, Os dois bichanos pararam E a Lua foi testemunha Do diálogo que travaram. Quando eles se olharam, Disse o rico, em tom amargo: “Tu és mísero vagabundo, Eu sou do mais alto cargo! Sou nobre, sou mais que tu! Portanto, passa de largo!” O pobre disse: “O teu cargo Foi a sorte quem te deu! Nasceste em berço de luxo, Cresceste no apogeu! Mias, caças, comes ratos… Em que és mais do que eu? Logo, este orgulho teu Não há razão pra ser forte… Vieste nu para a vida, Nu voltarás para a morte! Não chames, pois, de nobreza O que é apenas sorte”. Quem não se impor