Na semana passada, fui retirar dinheiro de um dos bancos na rua em que moro. Logo depois de sair, ouvi a voz de um homem atrás de mim. “Não posso falar. Estou dentro do laboratório e já vou ser atendido…”
Intrigada, virei-me para ver o rosto do mentiroso, já que não havia nenhum laboratório móvel encostado na calçada. Em vez disso, vi as costas de um trio se afastando rapidamente, ladeira abaixo—pai e mãe, cada um segurando na mão de uma menina de uns cinco ou seis anos que andava entre eles.
Continuei olhando enquanto que ele tirou o celular do ouvido com a mão esquerda e o enfiou no bolso. Foram se afastando de mim e eu retomei o meu próprio caminho, mas sem retomar meus pensamentos anteriores, pois agora estava refletindo sobre as implicações daquilo que eu havia ouvido e visto nos poucos segundos em que fora participante involuntária na vida daquela família.
Por que aquele homem mentiu? Poderia até ser uma declaração baseada num acontecimento e local verídico—ele (ou a filha, ou a esposa) realmente estava a caminho de fazer um exame nolaboratório localizado a uns cem metros dali. Talvez estivesse atrasado, sem tempo para conversar naquele momento. Ou eles já haviam feito o exame, e haviam saído de outro laboratório três quarteirões acima do banco. A “única inverdade” então seria a respeito do tempo—ele estava transferindo um evento futuro oupassado para o presente.
Continuei cogitando—Mas p’ra que fazer isto? P’ra que inventar uma inverdade? Afinal, o que tinha demais ele estar na rua, a alguns quarteirões do laboratório, em vez de que já estar dentro dele? Será que ele não poderia ter dito a verdade—“Estou a pé numa rua barulhenta, e vou fazer um exame de laboratório?” (futuro). Ou “Estou voltando de levar minha filha a um exame de laboratório e estamos correndo na rua para pegar a condução” (passado). Por quê a mentira?
Algumas possibilidades foram surgindo na minha mente, que lutava para encontrar uma solução que poderia elucidar a razão por trás da opção daquele senhor para fornecer uma informação que não refletia a realidade, especialmente numa situação tão corriqueira e aparentemente irrelevante, que nem aparentava ser uma de pressão ou coação.
Poderia ser que ele não ia, ou não foi, para laboratório algum. Talvez ele não estivesse acostumado a mentir. Esta invenção havia sido improvisado na hora para explicar sua ausência no trabalho e ele não havia tido tempo para trabalhar os detalhes. Mais tarde, ele descobriria que o chefe estranhou o som de carros buzinando e do ônibus freando bem dentro de um laboratório!
Por outro lado, ele poderia ser uma pessoa que dava tão pouca importância à veracidade dos detalhes, que mentia descaradamente em qualquer situação, sem nem se dar conta da quantidade de inverdades que proferia em situações do dia-a-dia.
Já na entrada do meu prédio, enquanto esperava o porteiro abrir para mim, mais um detalhe daquilo que havia visto surgiu na minha memória, como se tivesse feito um zoom numa máquina fotográfica. Percebi que na cena clicada na minha mente, e que ainda visualizava, a menininha parecia prestes a tropeçar, pois estava olhando totalmente de lado, para cima, como se estivesse também ouvindo a conversa do pai. Estaria perplexa? Ousaria questioná-lo? E se o fizesse, qual seria a sua resposta?….
Minha mente agora faz outro zoom. Para o futuro. Pai e filha estão conversando no celular.
Vislumbro uma mocinha. O Papai quer saber onde ela está.
Percebo uma moça. O Papai pergunta o que ela está fazendo.
Vejo uma mulher. O Papai está querendo saber quando ela vem visitá-lo novamente. Ela olha para a menininha ao lado, com quem anda na rua, de mãos dadas.
O que ela dirá? Qual será a sua resposta?
Fonte: Crônicas do Cotidiano