Pular para o conteúdo principal

Duas lágrimas

Ela passou a mão no cabelo, jogando-o para trás. O dia estava seco, sem vento, sem graça. E um turbilhão de lembranças invadiu a sua mente. Ela se lembrou que ele tinha um jeito meio estranho – sábio demais para coisas etéreas, abstratas, mas muito bobo diante da vida prática. Ele ficava vermelho toda vez que a via. E os olhos dele brilhavam na presença dela. É claro que ela fingia que não percebia.

Dar uma de doida, meu maior talento.

Ele tinha um jeito de menino imaturo. Enxergava nela sua ponte para si mesmo. Queria encontrar-se ao encontrá-la. Ele não tinha sonhos. Não tinha lar. Não tinha nada. Só ela. Mas, nem isso ele tinha.

Ela nunca o quis. Não que ela não gostasse dele, mas talvez não soubesse distinguir a intensidade do amor que nutria. Mas ela sabia que queria ele por perto. Só não muito perto. Apesar de tudo, ele era bem legal. Tinha uma pureza que não se encontra por aí. Uma sensibilidade que parecia ser sobre-humana.

Ele lia pensamentos. Eu juro. Sim, ele lia. Principalmente os meus...

Como explicar as vezes que ele mandava mensagens de carinho e encorajamento, justamente quando ela estava contando suas dores para o travesseiro, no silêncio das madrugadas? E as vezes que ele completava as frases que ela estava falando? E quando ele a descrevia, nos mínimos detalhes, enquanto conversavam por telefone ou pelo computador?

Era como que ele falava? Sinergia... sintonia... alguma coisa assim....

Chegaram a sair algumas vezes. Como amigos. Ela fazia questão de salientar. Parece que ele nem ligava tanto, até porque ele gostava dela de tal forma que bastava estar junto, bastava participar, bastava existir um pouco na existência dela...

Em uma dessas saídas, ele a abraçou bem forte na despedida. Foi um abraço diferente. Aparentemente, ele estava ‘pegando fogo’. Ela sentiu o membro dele, rígido, entre suas pernas. Ele acarinhou sua nuca, lentamente beijou-lhe por trás do ouvido e foi descendo pelas bochechas. Queria alcançar os lábios. Ela não deixou. Mandou-o parar. Entrou em casa.

Depois disso, não saíram mais. Se viram uma ou outra vez pela rua. A conversa não era lá grande coisa. Um “oi”, um “tudo bem”. Pronto. Ele estava com um olhar triste. Mas ela não se importava mais tanto. Estava decidida. Não o queria. Não sabia o motivo, nem tinha sequer outro pretendente em vista, mas sabia de uma coisa: ele não.

Que merda.

Agora, ela estava sozinha, vestida de preto, diante daquela lápide. A notícia lhe chegou como um baque.

Ele devia ter contado. Ele não tinha esse direito...

Em um relance, duas lágrimas rolam de sua face. Uma por ele, que nunca foi amado; a outra por ela, que nunca amou.

Tresloucadamente, joga-se sobre o bojo tumular. Beijando o epitáfio, exclama: “Te amo! Te amo! Te amo!”

E um estranho sopro gélido e repentino lhe acarinhou a nuca, chegando aos ouvidos, como se dissesse: “Tarde demais! Tarde demais! Tarde demais!”


Jénerson Alves, 23-07-2014

Postagens mais visitadas deste blog

O gato vaidoso - poema de Jénerson Alves

Dois felinos residiam Em uma mesma mansão, Mas um percorria os quartos; Outro, somente o porão. Eram iguaizinhos no pelo, Contudo, na sorte, não. Um tinha mimo e ração; O outro, lixo e perigo. Um vivia igual um príncipe; O outro, feito um mendigo (Que sem cometer delito Sofre só o seu castigo). No telhado do abrigo Certa vez se encontraram. Ante a tela do contraste, Os dois bichanos pararam E a Lua foi testemunha Do diálogo que travaram. Quando eles se olharam, Disse o rico, em tom amargo: “Tu és mísero vagabundo, Eu sou do mais alto cargo! Sou nobre, sou mais que tu! Portanto, passa de largo!” O pobre disse: “O teu cargo Foi a sorte quem te deu! Nasceste em berço de luxo, Cresceste no apogeu! Mias, caças, comes ratos… Em que és mais do que eu? Logo, este orgulho teu Não há razão pra ser forte… Vieste nu para a vida, Nu voltarás para a morte! Não chames, pois, de nobreza O que é apenas sorte”. Quem não se impor

Professor Reginaldo Melo

por Jénerson Alves Texto publicado na Coluna Dois Dedos de Prosa, do Jornal Extra de Pernambuco - ed. 625 Ao lado de outros poetas de Caruaru, entrei no apartamento onde o professor Reginaldo Melo está internado há três semanas, em um hospital particular. Ele nos recebeu com alegria, apesar da fragilidade física. Com a voz bem cansada, quase inaudível, um dos primeiros assuntos que ele pediu foi: “Ajudem-me a publicar o cordel sobre o Rio Ipojuca, que já está pronto, só falta ser levado à gráfica”. Coincidentemente, ele estava com uma camisa de um Encontro sobre a questão hídrica que participou em Goiás. Prof. Reginaldo (centro), ao lado de Espingarda do Cordel (e) e Jénerson Alves (d) Durante o encontro no quarto do hospital, ocorrido na última semana, quando Olegário Filho, Nelson Lima, Val Tabosa, Dorge Tabosa, Nerisvaldo Alves e eu o visitamos, comprometemo-nos em procurar os meios para imprimir o cordel sobre o Rio Ipojuca, sim. Além disso, vamos realizar – em n

A Vocação de São Mateus

  Dentre as obras de Caravaggio, ‘A Vocação de São Mateus’ é uma das que mais provocam debates e reflexões. A tela, com traços realistas, parece fazer saltar ao mundo real o que está expresso no versículo 09 do capítulo 09 do Evangelho de S. Mateus: “Passando por ali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: ‘Siga-me’. Mateus levantou-se e o seguiu”. O domínio da luz, inerente à verve do pintor barroco, é evidente na obra. O contraste da luz que entra pela janela no ambiente escuro parece representar o contato do mundo espiritual com o terreno – este reproduzido no grupo de pessoas à mesa e aquele pela figura do Senhor Jesus Cristo ao lado de São Pedro. Os indivíduos sentados à mesa parecem ter idades e posições sociais distintas. O mais relevante deles é Mateus, trajado de forma elegante e com uma postura de proeminência. Sem dúvida, uma boa exibição do que seria a conduta dos cobradores de impostos do primeiro século. No texto neotestamentári