Pular para o conteúdo principal

Perdi a fé

Por Ricardo Gondim, pastor da Igreja Betesda


Sentado na quarta fileira de um auditório superlotado, eu ouvia um renomado orador cativar mais de mil pessoas com sua oratória carismática. Na contramão do frenesi provocado por ele eu repetia para mim mesmo: “Não, não posso negar, já não comungo com os mesmos pressupostos deste senhor”. Aliás, parece que ultimamente vivo em controvérsias, tanto pelo que escuto quanto pelo que falo. Algumas pessoas me perguntam se provoco polêmica para fazer tipo. Outros querem saber se sei aonde quero chegar. Respondo: “Estou mais certo dos caminhos que não quero trilhar”.
Muito de minhas controvérsias surgiram porque eu me recuso a escamotear dúvidas com cinismo. Fujo de tornar-me inconseqüente nas declarações que possa fazer a respeito de Deus e da fé. Receio perpetuar uma espiritualidade desconectada da vida.
Reconheço, algumas intuições sobre teologia ainda estão verdes. Mas, nem sei se quero que elas amadureçam. O pouco de sentido que me fazem basta para que eu me ponha a garimpar a verdade. E isso é bom. Há um fluxo que me faz abandonar certas pedras onde outrora tomei pé. O que abandonei?
1. Não consigo mais acreditar no Deus inativo, que carece de preces “verdadeiras” para mover-se. Uma frase que não faz nenhum sentido para mim? “Oração move o braço de Deus”.
2. Não consigo mais acreditar que os milagres de Deus sejam prêmios que privilegiam poucos. Não consigo entender que Deus se comporte como um “intervencionista” de micro realidades, deixando exércitos de ditadores “correrem frouxos”. Inquieta-me saber que Deus tenha uma “vontade permissiva” para multinacionais lucrarem com remédios que poderiam salvar vidas. Não aceito que haja uma razão eterna para que governos corruptos atolem os mais pobres na mais abjeta miséria.
3. Não consigo mais acreditar que Deus, mantendo o controle absoluto de tudo o que acontece no universo, tenha sujado as mãos com Aushwitz, Ruanda, Darfur, Iraque e outras hecatombes humanas. Não aceito que ele, parecido com um tapeceiro, precisa dar nós malditos do lado de cá da história enquanto, do outro lado, na eternidade, faz tudo perfeito. Qual o propósito de Deus ao “permitir” que crianças sejam mortas pela loucura de um atirador ou que uma menina esteja paraplégica com bala perdida?
4. Não consigo mais acreditar que a função primordial da religião seja acessar o sobrenatural para tornar a vida menos sofrida. Os cristãos, em sua grande maioria, tentam fazer da religião um meio de controlar o futuro; praticam uma fé preventiva, pois aceitam como verdade que os verdadeiros adoradores conseguem se antecipar aos percalços da vida; afirmam que os ungidos sabem prever e anular possíveis acidentes, doenças, ou quaisquer outros problemas existenciais do futuro. Creio que a verdadeira fé não foge da lida, mas encara o drama de viver com coragem.
5. Não consigo mais acreditar em determinismo, mesmo chamado por qualquer nome: fatalismo, carma, destino, oráculo. Depois de ler e reler o Eclesiastes, parei de acreditar que o cosmo funcione como um relógio de quartzo. Acredito que Deus criou o mundo com espaço para a contingência.  Sem esse espaço não seria possível a liberdade humana. Creio que no meio do caminho entre determinismo e absoluta casualidade resida o arbítrio humano. Entendo que liberdade  é vocação: homens e mulheres acolhendo o intento do Criador para que a história e o porvir sejam construídos responsavelmente.
Reconheço que posso assustar na teimosia de importar do mundo do rock para dentro da espiritualidade o significado de “metamorfose ambulante”. Nessa constante fluidez, a verdade pode ser simples, mas nunca deixará de ser perigosa. A  senda sulcada da verdade foi sulcada por muitos, entre os passos, porém, percebo a marca das sandálias do meu Senhor. E só isso basta para eu prosseguir.
Soli Deo Gloria
fonte: site do Ricardo Gondim

Postagens mais visitadas deste blog

O gato vaidoso - poema de Jénerson Alves

Dois felinos residiam Em uma mesma mansão, Mas um percorria os quartos; Outro, somente o porão. Eram iguaizinhos no pelo, Contudo, na sorte, não. Um tinha mimo e ração; O outro, lixo e perigo. Um vivia igual um príncipe; O outro, feito um mendigo (Que sem cometer delito Sofre só o seu castigo). No telhado do abrigo Certa vez se encontraram. Ante a tela do contraste, Os dois bichanos pararam E a Lua foi testemunha Do diálogo que travaram. Quando eles se olharam, Disse o rico, em tom amargo: “Tu és mísero vagabundo, Eu sou do mais alto cargo! Sou nobre, sou mais que tu! Portanto, passa de largo!” O pobre disse: “O teu cargo Foi a sorte quem te deu! Nasceste em berço de luxo, Cresceste no apogeu! Mias, caças, comes ratos… Em que és mais do que eu? Logo, este orgulho teu Não há razão pra ser forte… Vieste nu para a vida, Nu voltarás para a morte! Não chames, pois, de nobreza O que é apenas sorte”. Quem não se impor

Professor Reginaldo Melo

por Jénerson Alves Texto publicado na Coluna Dois Dedos de Prosa, do Jornal Extra de Pernambuco - ed. 625 Ao lado de outros poetas de Caruaru, entrei no apartamento onde o professor Reginaldo Melo está internado há três semanas, em um hospital particular. Ele nos recebeu com alegria, apesar da fragilidade física. Com a voz bem cansada, quase inaudível, um dos primeiros assuntos que ele pediu foi: “Ajudem-me a publicar o cordel sobre o Rio Ipojuca, que já está pronto, só falta ser levado à gráfica”. Coincidentemente, ele estava com uma camisa de um Encontro sobre a questão hídrica que participou em Goiás. Prof. Reginaldo (centro), ao lado de Espingarda do Cordel (e) e Jénerson Alves (d) Durante o encontro no quarto do hospital, ocorrido na última semana, quando Olegário Filho, Nelson Lima, Val Tabosa, Dorge Tabosa, Nerisvaldo Alves e eu o visitamos, comprometemo-nos em procurar os meios para imprimir o cordel sobre o Rio Ipojuca, sim. Além disso, vamos realizar – em n

A Vocação de São Mateus

  Dentre as obras de Caravaggio, ‘A Vocação de São Mateus’ é uma das que mais provocam debates e reflexões. A tela, com traços realistas, parece fazer saltar ao mundo real o que está expresso no versículo 09 do capítulo 09 do Evangelho de S. Mateus: “Passando por ali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: ‘Siga-me’. Mateus levantou-se e o seguiu”. O domínio da luz, inerente à verve do pintor barroco, é evidente na obra. O contraste da luz que entra pela janela no ambiente escuro parece representar o contato do mundo espiritual com o terreno – este reproduzido no grupo de pessoas à mesa e aquele pela figura do Senhor Jesus Cristo ao lado de São Pedro. Os indivíduos sentados à mesa parecem ter idades e posições sociais distintas. O mais relevante deles é Mateus, trajado de forma elegante e com uma postura de proeminência. Sem dúvida, uma boa exibição do que seria a conduta dos cobradores de impostos do primeiro século. No texto neotestamentári