sexta-feira, 21 de julho de 2023

O Medo que me expulsa e leva ao paraíso - por Jénerson Alves

 



O Medo! Essa constante e indesejada companhia! “Fiquei com medo e me escondi”, confessou Adão pouco antes de ser expulso do paraíso. O Medo evoca o desejo de fugir, evadir-se, esconder-se. Debandar-se. De quem? Do outro? Ou de si? À semelhança do primeiro homem, temo e tremo perante uma pergunta do Criador: “Ubi es?” (Onde estás?).


Tal indagação não me coloca diante de um senhor barbudo, como o retratado por Michelangelo. Antes, posiciona-me diante de mim mesmo – e da minha humanidade. A essência adâmica que em mim habita é convocada a mirar-se em um espelho. E as palavras de Gustavo Corção fulgem como uma imagem: “Pássaro e lesma, o homem oscila entre o desejo de voar e de rastejar”. Como disse Pascal, sou “misto de grandeza e miséria”. E isso me amedronta. A meia distância do Logos e de Lúcifer, o Medo parece expulsar-me do Jardim do Éden, mas não sei o que há por trás do rio.


Curiosamente, o Medo também me transporta para outro jardim: o Getsêmani. Ali, vejo o Mestre posto em agonia. Em sua voz, o clamor de todos os aflitos. Aquele que não tinha fraqueza me ensina como agir em momentos de tensão. Não há razão para fugir, nem se esconder. Se há um cálice a ser tomado, tomá-lo-ei.


Temeroso, dou passos lentos para longe do meu Éden. Esperançoso, lanço mão da confiança de Bernanos: “até o Medo pode nos fazer entrar no paraíso”. Não mais o paraíso de Adão; agora, ao lado dAquele que disse “hodie mecum eris in paradiso” (hoje estarás comigo no paraíso).


Texto: Jénerson Alves

Imagem: Expulsion from the Garden of Eden (1828), de Thomas Cole.


sábado, 15 de julho de 2023

A garota que via os sons - por Jénerson Alves

 


Chamava-se Letícia. Garota de poucas palavras e muitos pensamentos. Cultivava uma discrição que às vezes parecia invisibilidade. Assim, esquivava-se de cantadas e paixonites que despertava nos garotos. Tinha apenas 16 anos, mas parecia ser mais velha – não por fora, sim por dentro. Uma alma antiga (ou seria eterna?) em um corpo jovem.


Até que conheceu o Hilário. Um garoto sem grandes atrativos. Óculos garrafais, corpo delgado, face com espinhas. E ela sentiu-se atraída por ele. Um magnetismo maior do que qualquer afinidade corporal. Era como um ímã, um fio intangível puxava um ao outro.


A ele, e somente a ele, Letícia teve coragem de contar seu segredo: ela via sons. Sim. Ouvir uma música poderia ser para ela uma experiência incrível ou trágica, pois cada melodia ganhava contornos específicos, os quais apontavam para o estado de espírito do compositor e/ou intérprete. Porém, o que mais a afligia não eram as canções, mas as palavras. Da boca de boa parte das pessoas, procediam sombras, lagartos, fumaças, venenos…


O Hilário não era assim. Quando ele falava, a garota via fluir azaleias, crisântemos e girassóis. Suas palavras eram formadas por cores vivas e alegres. Como poderia ser assim?


Ele a beijou. Não como Judas beijou o Senhor; como um devoto que oscula uma imagem.


E ela entendeu que não deveria se importar com as sombras procedentes dos outros. E ela passou a falar, fazendo brotar de seus lábios um prisma de cores deslumbrantes.


Texto: Jénerson Alves

Imagem: "Geliefden (Young Lovers)", por Robert Archibald Antonius Joan Graafland

A lenda da Comadre Fulozinha - por Jénerson Alves

 


Eu devia ter uns oito ou nove anos quando, pela primeira vez, ouvi falar sobre a Comadre Fulozinha. Eu morava em um bairro com ares de sítio. A rua ainda era um ambiente tranquilo para brincar, e os animais faziam parte do cenário. Em uma tarde qualquer, eu vi um cavalo com a crina amarrada, o que despertou minha curiosidade infantil. Um vizinho já idoso apontou para o equino e disse: “Foi a Comadre Fulozinha; eu bem que ouvi os assobios dela ontem”. E um arrepio de medo escorreu pelas minhas costas.


Voltando para casa, contei à minha mãe o que se passara. Com os olhos arregalados e em tom grave, ela explicou-me: “Comadre Fulozinha é um ser que protege os animais e as plantas, abre porteiras de fazendas e gosta de amarrar a crina de cavalos”. Meio cético, indaguei-lhe se a tal Comadre existia mesmo. Lembro-me de cada palavra da resposta: “Eu nunca a vi, mas quando era pequena, ouvia muito aqueles assobios lá longe… e pai dizia pra ninguém sair de casa, pois a Comadre estava por perto”.


Durante uns anos, esse fato ficou guardado em uma gaveta do meu coração. Há algum tempo, revisitei essa cena. Acho que a vida fica mais interessada quando colorida por seres de diversas naturezas, como anjos, fadas, duendes e – por que não? – personagens folclóricos. A verdade de muitas dessas criaturas está muito mais no que representam, nos ensinos que nos trazem e, principalmente, nas lembranças que nos evocam. Encontrar-me com a Comadre Fulozinha é, sobretudo, encontrar-me com o garoto que fui.


Sob esse sentimento, escrevi o livro ‘A lenda da Comadre Fulozinha’, que se encontra em fase de pré-lançamento pela Caravana Grupo Editorial. Na obra, uso a poesia popular para contar a história desta importante personagem do nosso folclore. O texto é simples, com um ritmo mnemônico e uma narrativa que busca nos conectar à natureza, aos outros e a nós mesmos.


Você pode adquirir o livro através do site da editora.

domingo, 2 de julho de 2023

Sem segredo nos seus olhos - por Jénerson Alves

 

Lovers in the moonlinght - Marc Chagall


– Você olha de um jeito estranho… – ela soltou, e depois esbugalhou os olhos, surpresa com o que acabara de ouvir de si mesma.

– Estranho? Como? – ele perguntou, franzindo os olhos.

– Às vezes, assusta… Parece que você está vendo coisas de outro mundo… olha para os lados… ou fixa os olhos em um ponto aleatório… – tentou explicar, um tanto confusa.


*****


Mal sabe que ela não foi a primeira pessoa dizer-lhe isso. Desde criança, os amigos apontavam para o jeito de mirar daquele garoto desengonçado. Nas fotos, dificilmente olhava para a câmera. Logo assim que as redes sociais começaram a surgir, algumas pessoas fizeram meio que uma ‘enquete’ nos comentários, ao reparar que ele sempre mirava locais improváveis: “Para onde ele olhava, afinal?”


Não havia segredo nos seus olhos. Diferentemente de Lúcia, Francisco e Jacinta, não tivera visões angélicas. Seu olhar não avistava a escada celestial que fora vista por Ellen White. Distinto dos místicos modernos, não via auras, energias, elementais ou lampejos cósmicos.


Ele olhava longe porque olhava para dentro. Apesar da face aparentemente inerte, seu coração embebecia-se de amor. O prosaico o encantava, o corriqueiro o comovia, o cotidiano o conduzia ao céu. Buscara no dicionário um sinônimo para o que sentia, mas não achou verbete à altura.


Tivesse ele o hábito de ler Gustavo Corção, identificar-se-ia com uma passagem: “O amor humano, configurado à vida física do homem, tem esse estranho itinerário: parte do paraíso para o mundo; (…) e deixando guardada a beleza com que se compõem as óperas e as baladas, reveste-se da obscura, da paciente, da humilde bondade – da pura bondade que é a própria essência do amor”.


*****


– Tá vendo? Você está fazendo de novo? – a voz meio irritada da garota o tira de seus devaneios.

– Sabe o que é? Vou explicar…

– Explique!

– Não é nada, não...




Texto: Jénerson Alves

Vou levar Lady Gaga para ouvir um baião de viola nordestina - Jénerson Alves

Mote e glosas: Jénerson Alves   Foto: Wikipedia Lady Gaga, cantora americana, É famosa demais no mundo inteiro, Fez um show lá no Rio de J...