Pular para o conteúdo principal

A PSICOPATOLOGIA DO RELIGIOSO CENTRADA NA IMAGO DEI

Por Paulo Crespolini


Todas as pessoas podem conter estruturas psicóticas e neuróticas que, talvez, nunca se manifestem ao longo da vida. Se a razão confere a normalidade ao indivíduo, a ausência dela designa aquilo que a psicopatologia chama de transtorno mental ou sofrimento psíquico grave . Cabe ao processo de individuação ampliar a consciência, norteando-a pelo fio condutor da normalidade. Alguns teóricos chegam a defender que a resistência a esse “princípio de estabilidade” faz suscitar a loucura.
O mundo do doente mental é assinalado por uma profunda ruptura com o significado de sua existência. Trata-se de uma experiência assustadora, pois junto à doença está à marca indelével da perda da identidade, da integração, do sentido e por fim da própria realidade. Há o encontro de um espaço sem limite e sem forma. Nesse quadro, a pessoa é afligida por uma anormalidade mental “provocada” e “instalada”. Em determinados casos, o sofrimento traumático pode ser um dos responsáveis pelo seu aparecimento.
Assim sendo, surge a psicopatologia como uma ferramenta científica, utilizada para compreender a linguagem representacional da loucura. Sua função está centrada no estudo da natureza da doença mental, entre causas, manifestações e estruturas. A empiria, a elucidação, a sistemática, a desmistificação e a análise personalizada dos casos e fatos são características que marcam o trabalho do psicopatologista.
Junto ao cenário do sofrimento psíquico também está aquela profunda consonância com a atividade religiosa. O estudo empírico reconhece, na religião, não o seu legado apologético, mas, sobretudo, a necessidade de enfocá-la de modo analítico e crítico. Não se trata de defendê-la ou acusá-la, todavia, de examiná-la como um fenômeno semiótico da loucura. Talvez, porque a religião venha operando no mesmo campo da razão, a saber: no comportamento, na afetividade, na linguagem e no pensamento.
Muito mais que articuladora de uma linguagem espiritual, a religião recorre a um discurso antropomórfico de projeção para construir a imagem de Deus no consciente do religioso. Dessa forma, inúmeros comportamentos humanos são vinculados à imagem Divina, como forma de justificar-se moralmente.
A partir do conceito de “pecado original” nasce uma antropologia depreciativa, cujo objetivo é ressaltar a hereditariedade pecaminosa do humano, recaída e inclinada para a prática do mal. A mutação ontológica, da beatitude ao maléfico, provocada pelo pecado, só pode ser salva pela religião. Eis o retorno ao mito paradisíaco perdido no Éden. Nesse contexto, a linguagem do pecado é idealizada como ausência de algo. Uma ideia que se aproxima da loucura, enquanto carência de razão. Quem sabe não haveria uma íntima relação de símbolos na esfera do religioso e do louco, pois nem todo religioso é acometido pela loucura, mas muitos loucos são religiosos.
De qualquer forma, se faz necessário retomar, etimologicamente, aquilo que é genuíno a uma prática saudável de fé. O termo “religião” é proveniente do latim religare, que significa “ligar outra vez”. Portanto, cabe à religião ser doadora de sentido, de consciência ética, de formação humana e de gênese intelectual.  A religião tem um papel social de suma importância, ainda mais se tratando de uma instituição que acompanha todas as etapas da vida do indivíduo: do nascimento à morte.  Por isso, é impossível estudar o transtorno mental do religioso fora daquele cenário que o suscitou.
Vale ainda ressaltar que a religião também possui um viés de alienação e de controle da consciência nos seus partícipes. Mesmo assim, precisamos ir fundo à questão sabendo que o sofrimento psíquico do religioso não está na fachada da religião.
Pelo contrário, consequente à religião está o discurso religioso e por trás do discurso religioso vem a “imagem de Deus” e aqui reside as mais variadas formas da loucura humana. Eis que se apresenta um amontoado de culpas reforçadas, de remorsos continuados e de acusações intermináveis. Não se trata de depressão, mas de uma paranoia em que o religioso se torna vítima de um Deus castigador. Por Ele, é constantemente perseguida, vigiada, ameaçada e punida. Aqui, há a necessidade do sangue derramado para aplacar a tirania do Divino em detrimento ao humano miserável. Sem generalizações, podemos afirmar que em algumas realidades a imagem de Deus foi utilizada no intuito de “torturar” a consciência religiosa do sujeito.
Toda interpretação de religião “como restritiva da realização humana ou como carga externa heterônoma sobre a existência acaba sendo, por isso mesmo, falsa” (Queiruga). Por isso, a religião tem o bonito caminho de não conduzir o indivíduo para fora de si, porém, ao mais profundo encontro consigo e com o sentido da vida!

PAULO CRESPOLINI
Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2004), atuando nos seguintes temas: história da filosofia moderna, movimento iluminista, crise eclesiológica e racionalismo. Tem pesquisado sobre a filosofia da alteridade a partir da inter-relação entre o pensamento de Emmanuel Lévinas, Jacques Derrida e Martin Buber. Nos últimos anos tem obtido resultados significativos no estudo da filosofia da religião em Queiruga, na experiência do Sagrado e na instituição metafísica e psicológica da atividade religiosa. Na Teologia (2009), a pesquisa está centrada em duas áreas, a saber: sistemática e bíblica; de um modo especial na cristologia, com o Jesus Histórico e o Cristo da Fé e na evolução histórica das Sagradas Escrituras.



Fonte: Recanto das Letras

Postagens mais visitadas deste blog

A Vocação de São Mateus

  Dentre as obras de Caravaggio, ‘A Vocação de São Mateus’ é uma das que mais provocam debates e reflexões. A tela, com traços realistas, parece fazer saltar ao mundo real o que está expresso no versículo 09 do capítulo 09 do Evangelho de S. Mateus: “Passando por ali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: ‘Siga-me’. Mateus levantou-se e o seguiu”. O domínio da luz, inerente à verve do pintor barroco, é evidente na obra. O contraste da luz que entra pela janela no ambiente escuro parece representar o contato do mundo espiritual com o terreno – este reproduzido no grupo de pessoas à mesa e aquele pela figura do Senhor Jesus Cristo ao lado de São Pedro. Os indivíduos sentados à mesa parecem ter idades e posições sociais distintas. O mais relevante deles é Mateus, trajado de forma elegante e com uma postura de proeminência. Sem dúvida, uma boa exibição do que seria a conduta dos cobradores de impostos do primeiro século. No texto neotestamen...

3 mulheres cordelistas que você precisa conhecer

  JOSILEIDE CANTALICE Josileide Cantalice nasceu em Bezerros-PE, em 1959. É casada, mãe de dois filhos e avó de cinco netos. Aposentada. Começou a escrever poemas em 2015, aos 56 anos de idade. Ainda criança apreciava a Literatura de Cordel, lendo folhetos para seus pais e vizinhos. Recentemente publicou o seu primeiro livro, intitulado 'Poesia e Fé'. Disse Rute a Noemi: Eu não vou te abandonar Aonde quer que tu fores  Eu irei te acompanhar  E onde quer que pousares Também eu irei pousar. EDIANA TORRES Ediana do Socorro Torres Fraga nasceu em 01.05.1977, na cidade de Bezerros-PE. É mulher negra, agricultora, artesã, cabeleireira, poetisa e declamadora. Em 2017, foi uma das vencedoras do Primeiro Recital Poético de Bezerros. É integrante da AMALB (Associação do Movimento Artístico e Literário de Bezerros). Ensinar nossas crianças  Com carinho e com respeito  Ainda é o melhor caminho  Para um futuro perfeito; É formando o cidadão  Que se faz uma nação...

Professor Reginaldo Melo

por Jénerson Alves Texto publicado na Coluna Dois Dedos de Prosa, do Jornal Extra de Pernambuco - ed. 625 Ao lado de outros poetas de Caruaru, entrei no apartamento onde o professor Reginaldo Melo está internado há três semanas, em um hospital particular. Ele nos recebeu com alegria, apesar da fragilidade física. Com a voz bem cansada, quase inaudível, um dos primeiros assuntos que ele pediu foi: “Ajudem-me a publicar o cordel sobre o Rio Ipojuca, que já está pronto, só falta ser levado à gráfica”. Coincidentemente, ele estava com uma camisa de um Encontro sobre a questão hídrica que participou em Goiás. Prof. Reginaldo (centro), ao lado de Espingarda do Cordel (e) e Jénerson Alves (d) Durante o encontro no quarto do hospital, ocorrido na última semana, quando Olegário Filho, Nelson Lima, Val Tabosa, Dorge Tabosa, Nerisvaldo Alves e eu o visitamos, comprometemo-nos em procurar os meios para imprimir o cordel sobre o Rio Ipojuca, sim. Além disso, vamos realizar – em n...