segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Cordel: É nascido o Deus-Menino - por Jénerson Alves

 



I

Pelos olhos de Maria,

Se acaso eu pudesse ver,

Faltando menos de um mês

Pr’o milagre acontecer.

Por certo, ela estava orando;

E cada segundo contando

Pr’o Filho de Deus nascer.


II

Maria seguia a lida

Entre ternas orações.

Nos seus seios, o colostro;

No seu ventre, contrações;

No seu coração, amor

Por gerar o Salvador,

Desejado das nações.


III

A Doce Mãe do Senhor

Recordava todo dia

Da visita do Arcanjo

Com a voz da profecia.

Hoje, o relato nós lemos.

Como o Arcanjo, dizemos:

“Agraciada Maria!”


IV

Santa Virgem visitada

Pelo Anjo de Elohim,

Disse a ele: “Eis Tua serva,

Cumpra Teu querer em mim”.

Da maneira de Maria,

Devemos nós todo dia

Falar para Deus assim.


V

Se uma flor tivesse voz,

Qual seria a voz da flor?

Seria qual voz daquela 

Que gerou o Redentor, 

Nazarena meiga e calma,

Que dizia: “Minha alma

Se alegra no meu Senhor”.


VI

Quando o Bebê dava ‘chutes’

Com os santos pezinhos Seus,

São José se aproximava

Pra sentir seus apogeus.

Nobre servo de Adonai

Eleito pra ser o pai

Do Unigênito de Deus.


VII

Talvez às dezoito horas

Foi a Anunciação.

E o que fazia a Virgem?

Qual a sua ocupação?

No que Maria pensava?

Não há dúvida: ela estava

Em fervorosa oração.


VIII

Maria, ao certo, lembrava

Que ao Anjo disse “sim”,

Da estada com Isabel

Na Vila de Ain-Karim,

Porque, neste mundo incerto,

Ter a família por perto

Gera proteção sem fim.


IX

Ao visitar Isabel,

Gestante de poucos meses,

O canto “Magnificat”

Louva a Virgem dos corteses,

Talvez querendo ensinar

Que a ação de cantar

É como orar duas vezes.


X

Maria com Isabel:

Tanta alegria e amor!

Isabel sentiu em si

O mover do precursor:

João – no ventre materno – 

Trazia o recado eterno

Da vinda do Salvador.


XI

O mundo estava perdido,

Sem vida, verdade ou via...

Na “plenitude dos tempos”,

Como Paulo escreveria,

Deus enviou o Seu Filho,

Para ao mundo trazer brilho

E a mais perfeita alegria.


XII

Maria e José se tornam

Farol pra todo casal:

Ele, de espírito justo,

Ela, de fé sem igual,

Pr’os casais de hoje dão

Doces lições de união

E honra matrimonial.


XIII

Maria, na sua vida,

Enfrentou dores constantes,

Mas junto de São José

Viveu dias exultantes,

Dois que se tornaram um

Mostrando que o lar comum

Tem desígnios fascinantes.


XIV

Lembrando o santo casal,

Às vezes fico a pensar:

Quem sabe um anjo visite

Toda formação de lar

Entoando um puro hino...

Há um mistério divino

No seio familiar!


XV

Olhando o mundo moderno,

Frágil de amor e fé,

E lembrando o simples casal

Da humilde Nazaré,

Melhor o mundo seria

Tendo em cada mãe, Maria;

E em cada pai, José.


XVI

Maria, a voz da pureza

Como um toque de alaúde,

José Carpinteiro tinha

Um emprego muito rude,

Mas um coração afável

E um jeito de ser estável 

De indescritível virtude.


XVII

No solstício de inverno,

Pós-festa de Chanukah,

César publica o Edito,

E um novo censo se dá:

Maria com São José

Dão adeus a Nazaré

Rumo a Belém de Judá.


XVIII

Segue o casal peregrino

Sem ajuda de ninguém

Cinco dias de viagem,

Porém firme se mantém,

Calor de altos termômetros:

Cento e quarenta quilômetros,

De Nazaré a Belém.


XIX

Durante os dias: estrada,

Poeira, enfado e calor.

Comida, por certo, escassa,

Da aurora ao sol se pôr,

E à noite, o casal se inclina:

A lua por lamparina

E o céu por cobertor.


XX

Sob o sol tão causticante,

Sobre a terra em seco pó,

Do deserto até Betânia,

De Betânia a Jericó,

A Virgem, a cada passo,

Sentia um maior cansaço,

Um enfado de dar dó!


XXI

De Jericó, mais um pouco,

Chegaram a Jerusalém,

Maria sentia até

Que nasceria o neném,

Mas o casal, fielmente,

Seguia os passos em frente

À cidade de Belém.


XXII

Brisa forte vem do sul

Na silente noite fria.

Chega o casal a Belém,

Em frenética sincronia,

Tudo é tão difícil, pois

Não se acha para os dois

Lugar na hospedaria.


XXIII

Completaram-se os dias 

De Maria dar à luz,

Mas na cidade frenética 

Um só clima se traduz:

"Para vós, não há lugares!".

Também hoje, em muitos lares 

Não há lugar pra Jesus.



XXIV

Na frieza de uma gruta,

O feno foi cobertor,

Três estrelas numa só 

Em singular resplendor,

Por um casal de judeus

Nasceu o Filho de Deus,

O eterno Redentor!


XXV

Ouve um grupo de pastores

Os coros angelicais:

"É nascido o Deus Menino,

E um novo tempo traz

Esperança às criaturas:

Glória ao Senhor nas alturas

E entre os homens haja paz!"


Autor: Jénerson Alves 

sexta-feira, 21 de julho de 2023

O Medo que me expulsa e leva ao paraíso - por Jénerson Alves

 



O Medo! Essa constante e indesejada companhia! “Fiquei com medo e me escondi”, confessou Adão pouco antes de ser expulso do paraíso. O Medo evoca o desejo de fugir, evadir-se, esconder-se. Debandar-se. De quem? Do outro? Ou de si? À semelhança do primeiro homem, temo e tremo perante uma pergunta do Criador: “Ubi es?” (Onde estás?).


Tal indagação não me coloca diante de um senhor barbudo, como o retratado por Michelangelo. Antes, posiciona-me diante de mim mesmo – e da minha humanidade. A essência adâmica que em mim habita é convocada a mirar-se em um espelho. E as palavras de Gustavo Corção fulgem como uma imagem: “Pássaro e lesma, o homem oscila entre o desejo de voar e de rastejar”. Como disse Pascal, sou “misto de grandeza e miséria”. E isso me amedronta. A meia distância do Logos e de Lúcifer, o Medo parece expulsar-me do Jardim do Éden, mas não sei o que há por trás do rio.


Curiosamente, o Medo também me transporta para outro jardim: o Getsêmani. Ali, vejo o Mestre posto em agonia. Em sua voz, o clamor de todos os aflitos. Aquele que não tinha fraqueza me ensina como agir em momentos de tensão. Não há razão para fugir, nem se esconder. Se há um cálice a ser tomado, tomá-lo-ei.


Temeroso, dou passos lentos para longe do meu Éden. Esperançoso, lanço mão da confiança de Bernanos: “até o Medo pode nos fazer entrar no paraíso”. Não mais o paraíso de Adão; agora, ao lado dAquele que disse “hodie mecum eris in paradiso” (hoje estarás comigo no paraíso).


Texto: Jénerson Alves

Imagem: Expulsion from the Garden of Eden (1828), de Thomas Cole.


sábado, 15 de julho de 2023

A garota que via os sons - por Jénerson Alves

 


Chamava-se Letícia. Garota de poucas palavras e muitos pensamentos. Cultivava uma discrição que às vezes parecia invisibilidade. Assim, esquivava-se de cantadas e paixonites que despertava nos garotos. Tinha apenas 16 anos, mas parecia ser mais velha – não por fora, sim por dentro. Uma alma antiga (ou seria eterna?) em um corpo jovem.


Até que conheceu o Hilário. Um garoto sem grandes atrativos. Óculos garrafais, corpo delgado, face com espinhas. E ela sentiu-se atraída por ele. Um magnetismo maior do que qualquer afinidade corporal. Era como um ímã, um fio intangível puxava um ao outro.


A ele, e somente a ele, Letícia teve coragem de contar seu segredo: ela via sons. Sim. Ouvir uma música poderia ser para ela uma experiência incrível ou trágica, pois cada melodia ganhava contornos específicos, os quais apontavam para o estado de espírito do compositor e/ou intérprete. Porém, o que mais a afligia não eram as canções, mas as palavras. Da boca de boa parte das pessoas, procediam sombras, lagartos, fumaças, venenos…


O Hilário não era assim. Quando ele falava, a garota via fluir azaleias, crisântemos e girassóis. Suas palavras eram formadas por cores vivas e alegres. Como poderia ser assim?


Ele a beijou. Não como Judas beijou o Senhor; como um devoto que oscula uma imagem.


E ela entendeu que não deveria se importar com as sombras procedentes dos outros. E ela passou a falar, fazendo brotar de seus lábios um prisma de cores deslumbrantes.


Texto: Jénerson Alves

Imagem: "Geliefden (Young Lovers)", por Robert Archibald Antonius Joan Graafland

A lenda da Comadre Fulozinha - por Jénerson Alves

 


Eu devia ter uns oito ou nove anos quando, pela primeira vez, ouvi falar sobre a Comadre Fulozinha. Eu morava em um bairro com ares de sítio. A rua ainda era um ambiente tranquilo para brincar, e os animais faziam parte do cenário. Em uma tarde qualquer, eu vi um cavalo com a crina amarrada, o que despertou minha curiosidade infantil. Um vizinho já idoso apontou para o equino e disse: “Foi a Comadre Fulozinha; eu bem que ouvi os assobios dela ontem”. E um arrepio de medo escorreu pelas minhas costas.


Voltando para casa, contei à minha mãe o que se passara. Com os olhos arregalados e em tom grave, ela explicou-me: “Comadre Fulozinha é um ser que protege os animais e as plantas, abre porteiras de fazendas e gosta de amarrar a crina de cavalos”. Meio cético, indaguei-lhe se a tal Comadre existia mesmo. Lembro-me de cada palavra da resposta: “Eu nunca a vi, mas quando era pequena, ouvia muito aqueles assobios lá longe… e pai dizia pra ninguém sair de casa, pois a Comadre estava por perto”.


Durante uns anos, esse fato ficou guardado em uma gaveta do meu coração. Há algum tempo, revisitei essa cena. Acho que a vida fica mais interessada quando colorida por seres de diversas naturezas, como anjos, fadas, duendes e – por que não? – personagens folclóricos. A verdade de muitas dessas criaturas está muito mais no que representam, nos ensinos que nos trazem e, principalmente, nas lembranças que nos evocam. Encontrar-me com a Comadre Fulozinha é, sobretudo, encontrar-me com o garoto que fui.


Sob esse sentimento, escrevi o livro ‘A lenda da Comadre Fulozinha’, que se encontra em fase de pré-lançamento pela Caravana Grupo Editorial. Na obra, uso a poesia popular para contar a história desta importante personagem do nosso folclore. O texto é simples, com um ritmo mnemônico e uma narrativa que busca nos conectar à natureza, aos outros e a nós mesmos.


Você pode adquirir o livro através do site da editora.

domingo, 2 de julho de 2023

Sem segredo nos seus olhos - por Jénerson Alves

 

Lovers in the moonlinght - Marc Chagall


– Você olha de um jeito estranho… – ela soltou, e depois esbugalhou os olhos, surpresa com o que acabara de ouvir de si mesma.

– Estranho? Como? – ele perguntou, franzindo os olhos.

– Às vezes, assusta… Parece que você está vendo coisas de outro mundo… olha para os lados… ou fixa os olhos em um ponto aleatório… – tentou explicar, um tanto confusa.


*****


Mal sabe que ela não foi a primeira pessoa dizer-lhe isso. Desde criança, os amigos apontavam para o jeito de mirar daquele garoto desengonçado. Nas fotos, dificilmente olhava para a câmera. Logo assim que as redes sociais começaram a surgir, algumas pessoas fizeram meio que uma ‘enquete’ nos comentários, ao reparar que ele sempre mirava locais improváveis: “Para onde ele olhava, afinal?”


Não havia segredo nos seus olhos. Diferentemente de Lúcia, Francisco e Jacinta, não tivera visões angélicas. Seu olhar não avistava a escada celestial que fora vista por Ellen White. Distinto dos místicos modernos, não via auras, energias, elementais ou lampejos cósmicos.


Ele olhava longe porque olhava para dentro. Apesar da face aparentemente inerte, seu coração embebecia-se de amor. O prosaico o encantava, o corriqueiro o comovia, o cotidiano o conduzia ao céu. Buscara no dicionário um sinônimo para o que sentia, mas não achou verbete à altura.


Tivesse ele o hábito de ler Gustavo Corção, identificar-se-ia com uma passagem: “O amor humano, configurado à vida física do homem, tem esse estranho itinerário: parte do paraíso para o mundo; (…) e deixando guardada a beleza com que se compõem as óperas e as baladas, reveste-se da obscura, da paciente, da humilde bondade – da pura bondade que é a própria essência do amor”.


*****


– Tá vendo? Você está fazendo de novo? – a voz meio irritada da garota o tira de seus devaneios.

– Sabe o que é? Vou explicar…

– Explique!

– Não é nada, não...




Texto: Jénerson Alves

sexta-feira, 24 de março de 2023

O bafo do Tempo - por Jénerson Alves

 



Pode não parecer, mas eu tenho um ‘intrigado’. Sim, um ‘sujeito’ do qual não quero ver a face (se bem que nunca a vi) e sinto um certo asco apenas em ouvir o seu nome. Para não deixar minha meia-dúzia de leitores inquieta, vou logo revelando: esse meu ‘intrigado’ é o Tempo. Não quero vê-lo, tampouco conversar com ele. Se tal criatura sentar-se à minha frente, não o chamarei para tomar um café.


Infelizmente, sinto que enfrentá-lo é uma luta inglória. Ontem mesmo tentei burlá-lo. E o que fiz? Algo simples. Liguei a televisão e programei a exibição de um filme que eu costumava assistir na Sessão da Tarde. Exatamente como fazia quando voltava da escola há alguns anos, preparei o leite com Nescau e as bolachas Maria. Queria sentir o gosto da infância nesses elementos.


“Que imbecil!”


Foi essa a exclamação que ouvi do Tempo, quando ele me avistou naquela circunstância. Chega pude sentir o bafo dele zombando na minha cara. Só não pude vê-lo – e já não tenho certeza se isso foi porque o Tempo é invisível ou se foi por causa do astigmatismo…


Enquanto o Tempo zombava de mim, fui subitamente abraçado por uma senhora. Repeti Camões: “Que me quereis, perpétuas saudades?”. Poderia uma lágrima ter caído da minha face, mas acho que essa fonte está meio seca (ou só meio cheia…).


Texto: Jénerson Alves

Imagem: Detalhe de ‘A persistência da memória’, de Salvador Dalí


quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

As cordas do coração - por Jénerson Alves

 

Em um opúsculo chamado ‘A paz na família’, Francisco Faus compara o coração humano a um instrumento de cordas – a exemplo de um violino, de uma harpa, ou de um piano. Ora, para uma música harmoniosa ser extraída de um instrumento, é mister que um bom intérprete realize uma boa execução das notas musicais, observando elementos como compasso, tempo e melodia. Contudo, por mais virtuoso que seja o artista, é impossível interpretar uma bela música se as cordas do instrumento estiverem desafinadas. É impraticável apresentar um concerto com instrumentos dissonantes.


Seguindo neste raciocínio, Faus é categórico: “(…) o coração também tem as suas cordas. Umas cordas que se chamam virtudes ou defeitos. São as cordas da humildade ou do orgulho, da fortaleza ou da moleza, da preguiça ou da laboriosidade, do otimismo ou pessimismo, da generosidade ou da mesquinhez… Virtudes que soam bem, ou defeitos que soam mal”. Assim, entendemos que as desarmonias não nascem, necessariamente, do que “os outros fazem ou dizem”, mas de como nosso coração recebe as palavras e ações que a ele chegam.


Temos de prestar atenção à música que nosso coração toca, bem como ouvir o canto do coração do nosso próximo. O filósofo Abraham Kaplar já apontou que é necessário superar o “duólogo”, isto é, conversas em que as pessoas falam para si mesmas e não se abrem para o verdadeiro diálogo, que acontece com alteridade e empatia. O maior exemplo está em Deus. Já no Antigo Testamento, o salmista testifica que o Senhor “se inclina” para nos ouvir (Sl 116), o que indica uma escuta permanente e empática. Que possamos ouvir o que nossos irmãos e irmãs expressam; e que possamos compor belas canções em nosso interior, sabendo que o Pai das Luzes nos ouve continuamente.



Texto: Jénerson Alves

Imagem: Interior with Woman at Piano, Strandgade 30, por Vilhelm Hammershøi

Vou levar Lady Gaga para ouvir um baião de viola nordestina - Jénerson Alves

Mote e glosas: Jénerson Alves   Foto: Wikipedia Lady Gaga, cantora americana, É famosa demais no mundo inteiro, Fez um show lá no Rio de J...